Um Diálogo entre Titãs na Floresta de Pindorama
Imaginação e utopia para um mundo pós-pandemia
O ano é o de 2021. O mundo acaba de sobreviver a uma pandemia global que abalou profundamente os valores humanos constituídos nos últimos milênios, e por uma grande ironia do destino, o Brasil — internacionalmente conhecido pelo brazilian way — foi eleito como o centro para a criação dos modelos éticos, sociais e econômicos da nova era. Para tanto, um consenso global entre os cidadãos decidiu evocar a alma de Sócrates e de outras figuras iluminadas em uma Ágora — o espaço público símbolo do auge da cultura e política da Grécia antiga — projetada em meio a uma floresta virgem localizada na região metropolitana do Rio de Janeiro. O ponto de partida e tema central escolhido para o diálogo é a concepção de liberdade, um dos valores mais caros à civilização moderna. Sócrates é o primeiro a se manifestar, motivado por sua maiêutica e decidido como sempre a descortinar todas as possíveis contradições que sustentam a ignorância dos homens:
— Parece-me que Adam Smith é a maior autoridade no conceito que visamos explorar em nosso encontro. As suas ideias atingiram um impacto tão grande, que levaram a uma crença praticamente dominante nas últimas três décadas: a de que o mundo todo estaria destinado a implementar a democracia liberal e a economia de mercado. É justamente por este legado que eu gostaria de perguntá-lo, Smith: O que é a liberdade?
O iluminista responde sem muito hesitar: — É agir de acordo com suas próprias necessidades.
A réplica do filósofo grego cava um ponto de inflexão no raciocínio do pensador escocês: — Muito bem, Smith; mas talvez eu não tenha me exprimido com muita clareza, pois não respondeste ao que eu tinha intenção de perguntar, porém, outra coisa.
— Como assim, Sócrates?
— Vou explicar-te, se me for possível. Conforme disseste, o indivíduo livre é o que age de acordo com suas próprias necessidades?
— Foi o que eu disse, de fato.
— É o que eu penso. Mas que diríamos ao indivíduo que, ao agir de acordo com suas próprias necessidades, se torna um escravo?
— Como! Escravo?
— Toda a arte trágica ilustra heróis que se tornaram escravos e vítimas de suas próprias paixões, assim como Shakespeare entendeu mais tarde. Édipo assassina o pai e desposa a mãe seguindo seu destino e mais puro instinto, assim como a vingança de Hamlet é inspirada por um genuíno tormento da alma.
— Perfeitamente. A pessoa, sob a influência de qualquer paixão extravagante, não é apenas infeliz em sua situação atual, mas muitas vezes está disposta a perturbar a paz da sociedade, a fim de chegar àquilo que ele tolamente almeja. Porém, o próprio corpo coletivo deveria ficar responsável de impedir ou aprovar as ações daquele, avaliando-as como éticas ou antiéticas.
— Com exceção, talvez, de quando ações são desprovidas de qualquer capacidade de julgamento ético, como nas leis que regem o funcionamento dos mercados. Quando aqueles que possuem a riqueza reprovam alguma política ou liderança específica, mesmo que por um viés estritamente econômico, podem simplesmente retirar o dinheiro de uma nação submetendo-a a diretrizes severas e contracionistas. Isso até quando a sociedade, não aguentando mais a pressão, faz seu voto na direção dos interesses do capital, fazendo a “mão invisível” agir novamente. Isso sem contar os casos de governo autoritário, onde as pessoas são coibidas pela violência das forças armadas a não expressarem suas preferências e seus julgamentos éticos.
— É muito certo o que dizes.
— E consideras elogiável nossa situação?
— De forma alguma.
— E não queres que nos atenhamos até certo ponto à conclusão que assentamos antes?
— Até que ponto, e a que conclusão?
— A que nos manda persistir. Caso queiras, prossigamos em nossa investigação com persistência, para que a liberdade não se ria de nós, pois pode muito bem acontecer que o significado de livre-arbítrio seja, de fato, agir conforme as próprias necessidades.
— Por minha parte, Sócrates, estou disposto a não desistir, apesar de ser pouco afeito a esse tipo de método. Uma certa irritação se apodera de mim ante o que conversamos, e me sinto verdadeiramente contrariado por ser incapaz de expressar o âmago da ideia.
— Mas não é verdade, amigo, que o bom caçador deve acompanhar o rasto e nunca desistir?
— Perfeitamente.
— E não concordarás, então, em chamarmos John Stuart Mill para tomar parte na caçada? Quem sabe se ele é mais habilidoso do que nós?
— Chamemo-lo, por que não?
Desolado, o pai da economia liberal busca se esquivar do olhar da nata de colarinhos brancos que apostavam cegamente no predomínio de suas ideias. John Stuart Mill se posiciona no centro da Ágora, e após um minuto de silêncio torna pública sua mais preciosa concepção: — Para uma ação ser considerada livre, ela deve considerar o bem maior. Dez devem sempre contar mais que um, e a liberdade só é possível se a média da satisfação coletiva perante os resultados de cada ação for sempre a maior possível.
E é a partir deste ponto, que Sócrates se torna o mediador do diálogo: — Ouviste, Adam Smith?
— Ouvi, porém, creio não ter compreendido muito bem o que ele quis dizer com “média da satisfação”.
Ao que Sócrates acrescentou: — Pois penso que compreendo. O que Stuart Mill quis dizer é que a liberdade depende do bem-estar do outro.
— Isso em que medida? Totalmente? — Perguntou o pai do liberalismo.
— Digo, Adam Smith, que posso apenas ser considerado livre na medida em que levo em consideração a felicidade do próximo. — Evoluiu Stuart Mill.
— Que coisas absurdas, Sócrates, ele profere!
— Por que pensas desta maneira, Smith?
— Por quê? Porque se uma ação depende do próximo para se manifestar, ela não pode ser considerada livre.
— Mas não foi isso que Stuart Mill disse.
— Não, por Deus. Por isso mesmo é que esta concepção não tem nexo.
— Então, em vez de simplesmente contrariá-lo, procuremos instruí-lo.
— Ele não me contraria, Sócrates; porém, tenho a impressão de que Adam Smith tem a intenção de mostrar que o que digo não chega na essência do conceito, assim como suas próprias proposições. — Complementou o defensor do Utilitarismo.
— Exatamente, Stuart Mill. E demonstrarei isso: dentro de sua lógica de “média da satisfação”, quem seria o juiz mais adequado?
Foi neste momento que Rudolf Steiner pediu permissão para interceder no diálogo, acompanhado pela apreensão da plateia de pensadores moderados, que orava para que sua contribuição fosse a mais fiel possível ao pensamento científico-clássico e não apontasse de modo algum para o aspecto mais espiritualista e gnóstico de sua obra.
– Para ser considerada livre, uma ação deve estar em total conformidade com as experiências genuínas de quem a executa. Ela deve ser amparada pela intuição deste, não pelas leis em voga e muito menos pelo desejo dos outros.
Ao ouvir as palavras do discípulo de Goethe, os moderados presentes na Ágora suspiraram em um misto de reconforto e interrogação. “O que seriam estas tais experiências genuínas”? A pergunta interna dos presentes ecoou também na mente dos filósofos, levando Sócrates a quebrar o silêncio:
— Que tal acha, Smith, da proposição de Steiner? Parece que ele disse alguma coisa.
— Sim, ele disse alguma coisa, mas o que afirmou ainda é insuficiente.
— E por que pensas assim?
— Por imaginar que a intuição pode realizar o papel de juiz e decidir com precisão o que é bom ou ruim. E de onde vem a intuição, senão também de nossa própria propensão ao autoengano, além de estar contaminada por nossos mais profundos paradigmas e preconceitos?
— Como já disse anteriormente, não acredito que a intuição seja a expressão de nossos preconceitos, mas sim o fruto de nossas experiências genuínas. — Acrescentou Steiner. “Estas experiências são aquelas que ninguém ordenou e nem foram fundamentadas pela moral aceita. Elas nascem de um contexto estritamente original, na qual somos obrigados a buscar no nosso mais íntimo a resposta a impasses éticos e estímulos exteriores”.
— O que nos levaria à conclusão de que a intuição é reativa, ancorada pelo nosso tratamento a estímulos do mundo externo, certo? Mas não foi exatamente isso que levou Hamlet e Édipo à ruína?
— Perfeitamente, Smith. Porém, os estímulos externos servem para buscarmos entrar em contato com algo mais ainda mais essencial: a nossa criatividade moral. Como proceder com perfeita convicção em cada situação? Isso só é possível se resgatamos o papel original do pensamento, o de “religar” o homem à natureza da qual ele se sente tragicamente separado.
— Ser ou não ser?
— Exatamente.
— Sinto que voltamos a estaca zero. Qual seria a diferença entre uma concepção de liberdade que considera apenas as minhas necessidades e aquela que leva em conta as necessidades do outro? — Indagou Smith.
— Sugiro convidarmos um novo participante para o nosso Diálogo: alguém que possa contribuir com novas perspectivas, um livre-pensador. O que acham de evocarmos em nossa Ágora o educador Paulo Freire? — Intercedeu Sócrates.
— Como bem entender, Sócrates. — Consentiram os outros três filósofos.
Enquanto Steiner recebe os aplausos dos artistas, ambientalistas e líderes espirituais presentes no espaço, Paulo Freire é acolhido com uma nuvem de vaias vindas dos menos afeitos ao posicionamento político que suas ideias representam. Externando uma serenidade invejável e calma inabalável, o maior dos pensadores da Terra dos Tupiniquins ilumina o espaço com suas palavras: —" Uma ação só é livre se ela visa superar a relação opressor-oprimido, ou seja, aquela que tem em vista libertar a si mesmo e ao outro". — A fala de inspiração quase budista faz os professores, monges e ativistas sorrirem prontamente, ao mesmo tempo em que os colarinhos brancos e idólatras da economia neo-liberal se levantam para se retirar e desistir de vez daquele circo.
— Muito bem. Ao que me parece, Freire trouxe um novo fator para o nosso diálogo. Penso que para conseguirmos avançar, devemos buscar entender o ponto de origem que dá forma à relação opressor-oprimido. Estão todos de acordo?
— Não necessariamente, Sócrates. Acredito que o próprio processo do pensamento intuitivo é capaz de romper esta relação. — Acrescentou Steiner. "Quando busco me conectar genuinamente à minha intuição, abro a possibilidade de ouvir as intenções mais profundas — minhas e do outro — permitindo-me encarar o próximo em sua real essência: um irmão, como sabemos pelas lições mais valiosas do cristianismo."
Agora só restam os monges e alguns poucos ingênuos que insistem em ter esperança na humanidade na cena. Todo o resto foi embora antes de correrem qualquer risco de "se intoxicar pelo veneno da religião". O pai da escola do pensamento ocidental sente que é o momento oportuno para convidar o último filósofo presente no espaço ao centro da Ágora, o décimo quarto Dalai-Lama: — Diga-nos sua santidade, em sua concepção, o que é a liberdade? — O tibetano fecha os olhos, quase como se fosse entrar em meditação, e após alguns minutos expressa repleto de temperança:
— Uma ação é livre somente se a intenção — kun long em tibetano — que a inspira é pura, amparada pelo desejo genuíno de beneficiar os outros. O conceito de liberdade guarda um paradoxo irreparável em sua essência: quanto mais nossas ações são inspiradas por um desejo genuíno de amor — "querer bem ao outro "— e compaixão — "não querer que o outro, sofra" — mais livres se tornam nossas ações de mente, fala e corpo.
Sócrates sabia que não havia a mínima necessidade de dar continuidade no diálogo. A liberdade, como qualquer conceito ou tipo de existência, só tinha razão de ser em relação ao outro. Liberdade e responsabilidade no fim encerravam os mesmos princípios, assim como só é possível de se alcançar o individual pelo coletivo. O método socrático enfim se revelava como o terreno fértil para trazer às claras verdades universais, assim como o lodo é imprescindível para fazer desabrochar a flor de lótus. Estranho mundo este onde o absurdo de Camus se abre como esperança, o niilismo de Nietzsche aparece como otimismo e os filhos de Gandhi vencem batalhas quando simplesmente deixam de as encarar como tais.
É nesse momento de profunda epifania que surge do horizonte o imperador romano Marco Aurélio junto de seus mentores Epiteto e Sêneca, complementado o raciocínio do Dalai-Lama e fazendo ecoar os espíritos de Buda, Spinoza e Lao-Tzu: — A liberdade não é garantida preenchendo os desejos de nossos corações, mas pela intenção mais profunda de torná-los calmos e serenos. É apenas por esta via que podemos entrar em sintonia com o equilíbrio espontâneo da natureza e agir de acordo com tal. — O momento marca o renascimento do Estoicismo, integrando as maiores conquistas da filosofia oriental a valores essenciais ao ocidente, como a própria renovação do conceito de liberdade.
Pela verdade fundamental tão procurada pela maiêutica de Sócrates, os liberais se descobrem como interdependentes, os materialistas percebem que para realizar seus sonhos devem apelar para o invisível e os deterministas aprendem que o simples fato de estamos vivos é um milagre pautado por um infinito de possibilidades. Quem sabe um dia vejamos um mundo onde Adam Smith descubra que só existe com o Dalai Lama e que finalmente acordemos para a realidade de que um só existe pelo e para o outro. Um mundo onde finalmente descubramos que a evolução do espírito e da obra humana só tem sentido pelo e para o diálogo. Quem sabe este mundo seja de fato o mundo que está clamando para nascer.
Inspirado pelo trabalho do prof. Rogério C. Calia.
Referências Bibliográficas:
Laques ou "Da Coragem", Platão.
A Riqueza das Nações, Adam Smith.
Utilitarismo, John Stuart Mill.
A Filosofia da Liberdade, Rudolf Steiner.
A Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire.
Uma Ética para o Novo Milênio, Dalai Lama.
José M. da Costa é pesquisador, designer e fundador da Storiologia.