O Midas do Século XXI
Um Ensaio Sobre os Processos de Construção de Valores
Famoso, o Rei Midas. Não só pelo mito, mas também pela história. A arqueologia nos diz que este soberano da antiga Frídia do século VIII a.C., localizada no que é hoje a porção oeste da Turquia, era obcecado pelo ouro. E não só isso: sua região foi uma das primeiras a cunhar moedas a partir do mais incorruptível dos metais. Pela mitologia sabemos que, a pedido próprio, o nosso figurão foi agraciado pelo deus Baco a realizar o sonho dos alquimistas medievais e, após transfigurar sua própria filha em uma estatueta dourada, percebeu que a benção era, na verdade, uma maldição. Baco então o aconselhou a banhar-se em água corrente, e o toque de Midas foi dissolvido nas areias auríferas do rio Pactolo para sempre.
Para sempre em partes, pois todo mito verdadeiro é indissociável da sina humana. Sua sequência histórica é mais que conhecida: ascensão e queda do império greco-romano — “quae sunt Caesaris Caesar”, alquimia medieval, era das navegações e, por fim, o acordo pós-guerras de Breton Woods, cuja implicação foi a posterior extinção do padrão ouro. Eis que este aparente prego definitivo no caixão serviu para deixar a maldição ainda mais sorrateira, pois a idolatria apenas se emancipou do metal sob o disfarce da austeridade econômica. Explico, mas antes da colheita precisamos preparar bem o terreno.
Axiologia: Uma Justificativa Filosófica para a Hierarquia de Valores
No ano de 1913, o filósofo alemão Max Scheler publicaria uma obra fundamental para a ciência dos valores, ou a axiologia, denominada O Formalismo na Ética e a Ética Material dos Valores. Apesar deste ser um tema abordado desde os socráticos e funcionado como pedra fundamental na escolástica de Agostinho de Hipona, foi somente com a obra de Scheler que pudemos pela primeira vez acessar uma verdadeira hierarquização de valores, a qual contempla desde aspectos úteis e materiais até dimensões puramente espirituais e filosóficas.
O mais interessante nas especulações de Scheler não é a ordenação em si — neste caso sua fenomenologia aparenta-se muito à conhecida pirâmide de Maslow, que parte de necessidades básicas para então ascender até níveis aspiracionais — mas sim os critérios que o filósofo levanta para definir por que uma coisa merece mais a nossa estima do que outra. Estes critérios são cinco: 1) duração, 2) divisibilidade, 3) fundamentação, 4) satisfação e 5) relatividade. Incrível como o ouro do nosso Midas, apesar de ser mestre apenas no primeiro destes domínios, pôde sobreviver durante tanto tempo na história como objeto do mais alto apreço. O mais durável e incorruptível dos metais foi sempre um raro alvo de cobiça — daí sua aversão à divisibilidade; além disso, ele só gera verdadeira apreciação quando fundamentado por valores mais imprescindíveis — como o amor, a saúde, a força de espírito, etc.; precisa ainda atrelar-se a muitos outros fatores para gerar satisfação e, por fim, é terminantemente dependente da relação com seus frutos para ser avaliado de fato no mundo real.
Não podemos ignorar que Scheler é um pensador de formação cristã e teológica, e por isso sua axiologia — apesar de ser uma combatente genuína da relatividade moral — é também presa fácil do sofisma e da retórica, uma vez que se ancora em fundamentos puramente conceituais. Lembremos: a religião e a filosofia nos são extremamente vitais, porém — como nos ensinaram Nietzsche e os analíticos do século XX — não passam de rebentos das dimensões mais abstratas da linguagem.
Guerras Santas, Ética Monoteísta e Expansão Colonial
Para que uma maldição se prolongue, ela precisa de razões que a disfarcem. E mais: estas razões precisam estar intrinsecamente ligadas e servir de sustento umas às outras, senão a corrente corre o grave risco de ceder ao menor sinal de alumbramento. É aqui que as ciências da guerra, da moral e da economia se entrelaçam definitivamente para parirem a modernidade.
Foi a caneta de Tomás de Aquino quem deu o aval decisivo para a realização do mais profundo desejo dos reinos do centro europeu, um sonho que crescia lentamente enquanto a igreja se ocupava em exorcizar os cultos pagãos de seu campesinato na alta idade média: expulsar a ameaça muçulmana do extremo leste e oeste do continente. Inaugurado o renascimento cultural, o cristianismo pôde enfim se reconciliar com a cultura greco-romana. Como próximo passo, era agora imprescindível levar a mensagem do único Deus, dos legítimos reis e da verdadeira moeda para o resto do mundo. Nem que fosse preciso forçá-la goela abaixo.
Quando o eurocentrismo expandiu seu umbigo para as “Índias” orientais e ocidentais, dizimando centenas de culturas, drenando os minerais da Terra e causando uma verdadeira hecatombe demográfica, parecia que não restava mais nada para saciar a fome da alma transmigrada de Midas. Mero engano, pois o nosso famigerado rei da Frídia ainda reencarnaria sob um derradeiro disfarce no período entreguerras.
Globalização: Democracia ou Imperialismo?
A história oficial tentou impor, durante muito tempo, a versão do protagonismo geopolítico conquistado pelos Estados Unidos da América do Norte como um sinônimo da vitória definitiva do capitalismo, cujo símbolo maior é uma imponente estátua da liberdade erguida sobre os escombros de ideais fascistas e comunistas. Porém, para quem viveu as turbulências de poder iniciadas nos últimos dez anos, essa narrativa parece mais um quadrinho do Superman do que qualquer outra coisa.
Turbulências estas que mostraram pela primeira vez sua face na metade da Segunda Grande Guerra Mundial. Por menos que pareça, os próprios Estados Unidos tinham uma significativa porção isolacionista — manifesta em uma disputa interna dos republicanos durante as eleições de 1940 —, mais propensa a negociar com os países do eixo do que a encarar os riscos e os custos de entrar na trincheira junto dos aliados. Franklin Roosevelt reelegeu-se pela terceira vez, a democracia triunfou e os norte-americanos ganharam seu lugar na cabeceira da mesa. Mas isso não aconteceu por pura vocação, e sim com uma grande ajuda das circunstâncias. Aliás, os vitoriosos estão longe de serem bondosos, como a sequência dos fatos nos mostra.
Para os derrotados, uma sentença — a migração de boa parte de sua população para o “Novo Mundo” e uma multa de ingresso forçado e desenfreado no trilho do progresso, a fim de pagar pelos danos causados. Para os vitoriosos, o dólar como novo lastro oficial da economia mundial, a disseminação da cultura do entertainment e do american dream e a hegemonia do secularismo pautado pela ética protestante. Em um verdadeiro golpe de mestre, o imperialismo pega carona no conceito de globalização e faz Midas reencarnar na complexa mecânica da austeridade econômica.
Austeridade Econômica e Fascismo Oligárico
Assim como o controle do estado sobre todos os meios de produção é uma característica fundamental da ditadura comunista, a austeridade econômica é um legado do fascismo oligárquico. Aqui, o medo da sombra que um regime projeta sobre o outro acaba servindo como justificativa decisiva para a não realização da quimera aristocrática de Platão e, ainda menos, da utopia social de Marx.
Fato: se a oferta de crédito, do verbo acreditar, aberta à população geral — por intermédio do estado e sob os juros exigidos pelos donos do capital —, não puder ser honrada, a dívida pública aumenta exponencialmente e se torna impagável. Como Platão bem expôs em sua República, essa oligarquia, que existe unicamente para proteger seus bens, faz dos governantes legítimos sindicalistas do povo, até que o elo se quebra para enfim parir a social-democracia. A sequência é épica: a relatividade moral transforma-se em uma ditadura regida pela maioria, na qual tanto a classe persuasiva quanto a base popular usurpam os frutos da camada produtiva, levando esta última a eleger um tirano para “mudar isso aí”.
E o que faz o tirano? Reestrutura com pulso firme a tríplice aliança da austeridade, aumentando as taxas de juros, intensificando as políticas de deflação monetária e direcionando os investimentos para o mercado de capitais — afinal, dinheiro sempre produz mais dinheiro. Alguma semelhança com a história do rei Midas? Infelizmente, como Max Scheler nos ensinou a poucos meses de estourar a Primeira Grande Guerra, o capital emancipado é completamente desprovido de significado intrínseco — ainda menos que o ouro — e só pode gerar sentido quando sustentado por uma cadeia de valores reais e autônomos.
Diferença e Multiplicidade: O Inferno são os Outros
Quando prosperamos, porém, a livre empresa é estruturalmente negada para o restante das pessoas, a melhora em nossas vidas é apenas aparente. Apesar do conforto privativo conquistado em bolhas arquitetadas para a vizinhança de iguais, nosso convívio passa a ser assombrado pelo fantasma dos excluídos. Por que alguns têm acesso a uma vida digna e outros não? Quando o Midas da pós-modernidade acorda, não é mais a impossibilidade de apreciar uma mesa farta ou mesmo de ter sua filha respirando ao seu lado que o assombra, mas sim o fato de estar circundado por um lixo cultural que não mais cabe debaixo de nenhum tapete, e que varia do mau cheiro e maus modos à extrema violência.
O que faria então o hoje superado deus Baco em uma situação desta? Mostraria ao Midas do século XXI que, a única maneira de livrar-se da maldição, é lavando sua cobiça na ‘água corrente’ das trocas reais, em uma economia que acumula e distribui na mesma medida e trata de valores não efêmeros. Como bem nos ensinou Max Scheler, esta economia deveria ter como base algo durável, ao mesmo tempo, divisível ou compartilhável com quem quer que seja, fundamentada por si, capaz de satisfazer independentemente de outra coisa e não prescindir de nenhuma espécie de relação para manifestar-se.
Para Scheler, um pensador de base neoplatônica e cristã, este algo de base seria o conhecimento em direção a um Deus único ou, simplesmente, à ‘verdade’, para empregarmos um termo mais filosófico. Infelizmente, como pudemos constatar ao longo de todo o enredo da história do ocidente — sem esquecer do papel que a convicção monoteísta também desempenhou na expansão do império oriental islâmico — esta concepção teológica e teleológica do mundo acabou servindo sempre como pretexto para a dominação de outras culturas também sustentadas por axiologias legítimas. Seria então possível, sem cairmos na armadilha do relativismo moral, falarmos de uma economia do conhecimento pautado pela multiplicidade?
Conclusão: Pela Educação e Redenção de Midas
Em um universo esclarecido, a teologia, a filosofia e a economia não se ocupariam com propostas ideais de sistematização do mundo, mas apenas com a tarefa de liberar os valores das amarras do dogmatismo e de dispor os problemas sobre as suas devidas perspectivas. Quanto aos pesquisadores, escritores e designers, estes deveriam aplicar-se mais em ajudar as pessoas a pensar de maneira autônoma, e não simplesmente em ganhar seu quinhão trabalhando para a indústria da arquitetura de falsas verdades, da valorização de produtos fúteis e da engenharia do vício digital.
Ao olhamos por este prisma, fica óbvia a possibilidade de tratarmos a nossa principal doença não com o ouro — como queria Hernán Cortés ao justificar o fascínio dos espanhóis pelo vil metal ao imperador asteca Montezuma — mas com o conhecimento e a educação. Somente com uma pedagogia capaz de cultivar o interesse e a propensão ao diálogo, requisitos básicos da capacidade de — na mesma medida —, oferecer e aceitar a crítica, é que poderemos vencer esta verdadeira Torre de Babel da idade das trevas da informação.
Utopia? Pode até ser, mas quem consegue viver em meio a um labirinto sem imaginar ao menos uma maneira de se livrar do Minotauro? Prefiro acreditar que a pós-modernidade nos privou das grandes verdades únicas do mundo por que elas simplesmente nunca existiram, tendo sempre ocupado o intervalo dinâmico e sutil que anima as diferenças. Não é à toa que o ápice do direito é a jurisprudência: esta arte nada em nada se assemelha ao jeitinho, mas em saber tratar problemas paradoxais, mal definidos e mal estruturados com conhecimento, interdisciplinaridade e criatividade. Pois a habilidade de arredondar a bola em um campo esburacado, nós brasileiros temos de sobra; só nos falta estendermos esta prática para além dos domínios do futebol. Como sempre e mais do que nunca, precisamos de educação. Justo o valor o qual fomos acostumados a colocar na escala oposta do ouro em nossas vidas.
José M. da Costa é pesquisador, designer e fundador da Storiologia.